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sábado, 12 de outubro de 2013

Carta a Lucinha

Carta a Lucinha.
Campina Grande, 12 de Outubro de 2013
Querida e amada Lucinha, bom dia, boa tarde e boa noite, sempre!
Quero te falar um pouco sobre o que penso a respeito de nós duas. Mas primeiro vou falar um pouco desse dia em que resolvi te procurar.
Hoje é um dia que foi convencionado como “dia da criança”.
Muitos pais tratam todos os dias como momentos de amor às suas crianças, inclusive as interiores. Amam e cuidam dos seus filhos e amam a eles próprios.
Outros tantos, infinitamente tantos, lembram, nesse dia, que tem criança em casa e por isso vão aos shoppings (onde existe), mercados de brinquedos, sorveterias, lanchonetes, cinemas, parques, praças etc. Nesse momento as gargalhadas misturam-se aos choros das quedas, nas tentativas das primeiras pedaladas dos primeiro velocípedes, das tão sonhadas bicicletas. Pequeninos colos embalam sofisticados ou simples bebezinhos comprados de última hora, os quais foram acalentados em sonhos ingênuos, desprovidos de malicia, reproduzindo a reinvenção da vida. Mas são os games e as últimas invenções tecnológicas e de comunicação que substituem os vínculos afetivos, no atual modelo de sociedade, mais veementemente.
Para inúmeras crianças os brinquedos, num dia marcadamente consumista, se constituem na única expressão de vínculo afetivo com quem os gerou. Entretanto há também àquelas que nem a isso tem direito. Transitam de um lado para o outro, a esmo, sem rumo. Cadê o pai? Cadê a mãe? Cadê a sociedade? Não, não tem ninguém!
Eu poderia enumerar aqui um milhão de problemas que rodeiam as crianças pálidas, cálidas, rebeldes “insanas”, essencialmente excluídas de todas as instancias de uma vida tranquila a que têm direito, marcadas pela ausência de afeto, como garantia de uma fase adulta sem as doenças da mente, as neuroses.
Mas quem está preocupado com isso quando dois corpos se procuram na ânsia pelo prazer? O que é a possibilidade de um bebê diante de três segundos de êxtase, em que rostos transfigurados e enlouquecidos perdem a noção de passado, presente ou futuro. O que importa as consequências?
Mas você é tão menina para entender isso, não é mesmo Lucinha?
Entendo que não refletes, apenas sofra e pensa que esquece e esquece que o supostamente esquecido é dor. Chora e em seguida sorri, depois sorri e em seguida chora. Assim a vida vai se constituindo. Vida? Que vida?
Segundo o dicionário Aurélio, a palavra amor é um substantivo masculino que denota afeição viva por alguém ou por alguma coisa, como amor a Deus, ao próximo à pátria, à liberdade. É um sentimento apaixonado por outra pessoa [...] Zelo, dedicação...

Percebo que amor foi algo meio atrapalhado para ti. Foi sempre assim: uma migalha ali e depois retirada acolá.
Primeiro sufocada pelo zelo do papai e do vovô, os dois brigando para saber a quem pertencias. Dois homens, os mais importantes da tua vida, lutando pela bela menininha de cabelo negro e cacheado, rechonchuda e extremamente inteligente. Sua mãe, ainda enlutada com a perda imatura e bem recente do seu primogênito, grávida de mim, enraivada, tomada por suas angústias e dores psíquicas, próprias do luto, destilava suas neuras na ausência do afeto desses dois homens por ela, mas também na ausência física deles em casa.
Quantos sentimentos dúbios? O papai que nada permitia, mas apegava-se como sanguessuga( única expressão de afeto), o avô que fazia todos os gostos ( lembrança de um rosto amável) e assim crescendo. Mas tinha também a mãe odiosa que não te beijava, não oferecia o colo e nem um afago. Assim foste crescendo.
A segunda feira era dia de alegria e de tristeza, dia da certeza da chegada dos dois homens que disputavam você, mas também da partida deles de volta ao sitio.
Da manhã da terça até a manhã da outra segunda o rancor da mãe a tornava uma madrasta má, assumia formas e contornos de crueldade que se cristalizavam em duras e cortantes palavras “_Você não é nada, é uma peste, não sei o que veio fazer no mundo, vá fazer os serviços, carregue água na cabeça, cuide dos seus irmãos, arrume a casa, cuide da comida, não saia de casa, não brinque, não faça xixi na cama, durma nesse colchão de capim esburacado, estude, não queira ser rica e quando eu chegar vou ta matar de tanto que surra se uma coisinha dessas não tiver do jeito que quero”.
Quanta dor Lucinha! Ainda escuto o eco dos seus gritos, seu choro sufocado! Chaleira de água quente jogada em tua direção, toras de lenha em chama, cabos de vassoura... Ai, ai, ai, ai, ai [...] “_Pode bater, não vou mais sentir”. Pode matar! Dizia você, pobre menina.
Tudo piorou com a morte da pequenina e adorável irmãnzinha, e em consequencia a do seu vovô ( que não suportou a depressão, por sentir-se culpado pela morte da menina). A mãe agora somava outras dores, que se revelavam no martírio a que submetia teu corpo ainda tão criança, assim como sua mente.
O seu frágil corpo de menina moça tornou-se alheio as dores. As da mente você nem percebia, pois se rebelava e recriava outro EU, centrada no seu próprio mundo: solitário, sonhador, rebelde, transgressor. Matava aula, fugia, se acidentava, achava a dor natural e ia sobrevivendo. Mas dentro de si, no âmago do seu ser uma chama tênue permanecia alimentando seu sonho maior: SER GENTE. Amar e ser amada. Reconhecer-se como pessoa. Amar-se!
Virara uma mocinha. Queria ser bela! A odiosidade que provocava em uns e a inteligência decantada para outros não era bastante para chamar a atenção sobre si mesma. Tinha que ser rica, ter belas roupas, pois as poucas que dispunha eram escondidas pela mãe num baú com chave de segredo para que não saísse de casa. Pensava que assim seria admirada e amada. Outros atropelos vieram. Mais uma vez a crueldade bateu a sua porta.
E como diz o pernambucano Alceu Valença, compositor e interprete:
“E tudo vira desejo
Desejo e nada mais [...]
Na triste praça da paz”.
Você cresceu fisicamente, mas essa menina tão linda, em especial pela capacidade de sobreviver ao caos, não quer deixar a mulher fazer-se presente, aflorar. As dores não foram superadas, o grito continua preso na garganta e basta um minúsculo fenômeno que remonte ao passado e as carências vão aparecendo, se unindo e se agigantando, formando um monte, um todo! Um todo nojento, ornado por tantos outros traumas que se somaram em consequência dos eventos primários, como que para justificá-los.
Mas eu estou aqui hoje para te ajudar a perdoar tudo! Venha para meu colo. Eu te amo muito. Acho-te um ser humano lindo e não viesse ao mundo para sofrer. Viesse para SER iluminada, mas principalmente para iluminar. Tua missão é bela. Eu te apoiarei na visita a teu coração, a tua mente, a cada célula do teu infinito SER, a sarar essas feridas com uma expressão de amor e de perdão, nós faremos grande colheita. Eu te ajudarei a cumprir essa missão e nós duas seremos felizes. Você ficará em paz no teu mundo de criança e eu me farei mulher!
Venha, não é uma carona. Estou a tua disposição. Vamos viver as coisas antigas com um novo olhar, sob a ótica do perdão! Eu te amo e sempre te amarei e agora a história é outra.
Você não está mais sozinha. Tens a mim. Mostrar-te-ei porque erraram contigo. Vamos voltar e descer os degraus da escada de nossas vidas bem juntinhas, num passinho de cada vez. Levar-te-ei no colo e, quando percorrermos todos os labirintos que nos esperam, segurarei firmemente a tua pequenina mão. Destruirei todos os monstros que atrapalharam teu sono e que diminuíram tua capacidade de sonhar. Chorarei contigo, enxugarei tuas lágrimas e te farei sorrir quando tudo tiver passado. Vamos recuperar teu EU e reconstituir o MEU! Vamos olhar aquele inferno, encarando-o de frente, tornando-o claro. Vamos repicar os sinos em agradecimento ao cosmo por essa possibilidade de renascimento.
Perceberás como és linda, como de te emana um facho de luz que transcende a compreensão humana e que provoca àqueles que precisam desse teu brilho para serem percebidos, bela Lucinha!
Vamos, não demore, a jornada é longa! Encontraremos sombras, as tuas e as minhas também, mas nós as clarearemos com nosso esplendor, as faremos translúcidas.
Depois que você se reencontrar a paz tomará conta de ti e eu poderei retornar serenamente, subindo os degraus da escada com firmeza e tranquilidade, pois terei a certeza que ficasse muito bem na tua própria companhia. E, ao chegar ao topo poderei abrir a porta da maturidade sem medo, pois atrás de mim estará uma linda menina plena e feliz, a qual nunca esquecerei.
Eu sou você hoje e você eu no passado, não sou reeditada, mas reestruturada com traços de ternura e de afeto tecidos delo perdão.
Beijos minha menininha!


Nalú



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